REGISTROS, GENEALOGIAS, HISTÓRIAS E POESIAS...
a fim de preservação da memória de nossos ancestrais
MARILIA GUDOLLE C. GÖTTENS

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Revolução Farrapa - Toque de silêncio

          É hora de soprar as velas. Acender a luz elétrica. Escutar o telefone, as buzinas estridentes. O matraquear de um edifício em construção. É hora de voltar ao ritmo da vida moderna.
          Um mergulho no passado nos devolve estonteados. Meus ouvidos se habituaram com o canto dos pássaros. meus olhos ainda estão cheios de vaga-lumes. De horizontes a perder de vista. Anseio pelo gosto da pitanga. Acostumei-me ao ar perfumado de outro século.
          Passeio pelo apartamento em busca de algo do passado. Qualquer traço de união com o mundo em que vivi. Sorrio ao lembrar-me de um sobrevivente do Rio Grande antigo. Aqueço água no fogão a gás e ponho erva na cuia. O gosto do chimarrão é o mesmo de todos os tempos. Herança nativa que teima em sobreviver.
          Tomando mate me aproximo da janela. O dia já está claro. Automóveis vão tomando conta da rua. Entre os edifícios, ainda vejo uns retalhos do Guaíba. Sereno e cor de café com leite. Por sobre o telhado do Teatro São Pedro, descanso a vista na Praça da Matriz. Todos os jacarandás estão floridos. Os balanços ainda estão vazios. Pessoas caminham apressadas. Ninguém se cumprimenta. Ninguém tem tempo a perder.
          Antes de ser arrastado pela correnteza, procuro os traços que a revolução deixou. Do outro lado da praça, no lugar do antigo casarão de onde fugiu Fernandes Braga, ergue-se um palácio de estilo neoclássico. Ainda trabalha e dorme ali o presidente da província. Mas o palácio se chama Piratini. A Rua da Igreja é agora Duque de Caxias. O poder legislativo se abriga no Palácio Farroupilha. A bandeira da República Rio-Grandense ondula ao lado da bandeira do Brasil.
          Tiro o carro da garagem e saio à procura de outra praça. Tenho a cabeça povoada de fantasmas. Dirijo devagar. Estaciono o carro e saio a caminhar entre as paineiras. Parecem árvores de Natal enfeitadas de algodão. A praça está deserta. Um leque de palmeiras imperiais contorna a estátua branca. Garibaldi e Anita ali estão a minha frente. É bom vê-los juntos outra vez.
          Garibaldi nunca esqueceu o Rio Grande. Da Itália, respondendo a uma carta de Domingos José de Almeida, assim recorda seus companheiros de revolução:

 "Quando penso no Rio Grande, nessa bela e cara província, quando penso no carinho                                      como fui recebido por vossas famílias, onde fui considerado como filho. Quando penso                        em vossos valorosos concidadãos e nos sublimes exemplos de amor pátrio e abnegação                        que deles recebi, fico realmente comovido. E o passado de minha vida se projeta na                              memória como alguma coisa de sobrenatural, de mágico, de verdadeiramente     romântico.
          Vi quantidades de tropas mais numerosas, batalhas mais renhidas, mas nunca vi, em nenhuma        parte, homens mais valentes nem cavaleiros mais brilhantes do que os da cavalaria rio-            grandense, em cujas fileiras comecei a desprezar o perigo e combater dignamente pela causa das nações. Quantas vezes fui tentado a revelar ao mundo os feitos assombrosos que vi realizar por essa gente viril que sustentou por mais de nove anos a mais encarniçada luta contra um poderoso Império!..


          Um joão-de-barro está fazendo ninho no peito de Garibaldi. Mas as pessoas que passam não vêem esse poema de amor. É preciso seguir em frente. tenho ainda uma promessa a cumprir.
          Atravesso as pontes do Guaíba. Vou em busca da casa de Gomes Jardim. Dali partiram os primeiros combatentes de 1835. E ali se apagou a última chama da revolução.
          Assinada a paz de Ponche Verde, cada um seguiu o seu caminho. Gomes Jardim e Isabel Leonor retornaram às Pedras Brancas. A estância que deu origem à cidade de Guaíba fora pilhada pelas tropas imperiais. Nenhum gado sobrara nas pastagens. Silêncio na olaria e na charqueada. Mas no alto da coxilha que domina o rio, a casa resistira ao abandono. E o cipreste continuava a balançar seus galhos ao vento sul.
          O casal está velho. E é preciso começar tudo de novo. Trabalham lado a lado como nos primeiros tempos. Os campos vão sendo repovoados. Peões antigos voltam ao galpão campeiro. Vacas vão dando cria. A semente brota na terra. A casa tem outra vez o cheiro de pão. 
          Estaciono o carro diante da casa de Gomes Jardim. Um século e meio depois do início da guerra, ela ainda está no mesmo lugar. A cidade cresceu a sua volta. Mas o cipreste ainda lhe guarda a porta. E a vista se perde na imensidão do rio.
          Começo a sentir o pulso acelerado. Desço do carro e me dirijo à casa. O tempo vai recuando a cada passo. Ainda me falta assistir ao derradeiro ato. Antes do pano cair.
          Faz frio no alto da cochilha. É o dia 18 de julho de 1847. Pouco mais de dois anos depois da paz. Está aberta a porta da sala de visitas. Muitas pessoas aguardam em silêncio. Em cada rosto uma expressão de dor. Passo por elas e me dirijo ao quarto. Cheiro forte de cânfora e de álcool. Apoiado contra os travesseiros, Bento Gonçalves acaba de morrer.
          No mesmo barco que o trouxe de Triunfo, seu corpo é levado até Camaquã. O enterro é simples. Poucos amigos estão na Estância do Cristal. Mas um deles guardará seu túmulo. Nico Ribeiro, o ex-escravo e corneteiro. E os gaúchos, passando pela estrada, ouvirão muitas vezes o clarim. É o toque de silêncio de uma guerra. Que até hoje não chegou ao fim. 



Cheuiche, Alcy, A Guerra dos Farrapos, Porto Alegre, 1984       

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