De tempos em tempos a sociedade vibrava com uma expectativa: a vinda de Buenos Aires, para o Teatro Prezewodoski, de uma companhia de zarzuelas ou de operetas, que havia marcado época na capital portenha. Do litoral, ou centro do Brasil, nada ou quase nada chegava à faixa da fronteira, onde se situa Itaqui. Do outro lado, a Argentina contava com todos os meios de cultura, inclusive com uma estrada de ferro, de bitola larga.Na memória do menino que cumpriu larga etapa de sua vida, por caminhos do Mundo, palpita ainda a saudade do tempo perdido, saudade, "esse mal de que se gosta e bem que se padece", como dizia o velho Francisco Manoel de Mello.
Revejo minha cidade comentando nas esquinas, nas janelas baixas de ombreiras de pedras caneladas, nas alcovas, nos salões, nas cozinhas, nos clubes, nas vendas, nas farmácias, em toda parte, o acontecimento marcado no tempo, há largo tempo, como promessa de vida na secura de um deserto. A data estava assinalada em cores em todas as folhinhas que vinham das "tiendas" de Alvear, estampadas com panoramas de Buenos Aires, e a hora prometida já palpitava em todos os relógios. No Teatro Prezewodoski seria realizado um "baile azul", em que todos os vestidos seriam dessa cor. As famílias ricas encomendavam a Buenos Aires os modelos mais raros e, os menos favorecidos da fortuna compravam do outro lado do rio os tecidos mais caros. As costureiras da cidade não descansavam e, nos "ateliers" rumorosos, parlantes, febris, era uma orgia de sedas, gorgurões, contas de vidro, pérolas e cadarços. Murmurava-se, de tudo e de todos. Os mais caros vestidos, encomendados do exterior, eram vistos pelas artesãs da cidade como coisas fantásticas. Havia uma novidade de proporções inéditas, que interrompeu muito sono de jovem concorrente: a filha de um fazendeiro milionário encomendara seu vestido de Paris. Dizia-se que a cauda, acolchoada em seda, mediria cinco metros e a menina, formosa e elegante, usaria um diadema de pedras preciosas.
Os comentários eram vários: "Menosprezo à prata da casa...", "Vaidade que desafia a santa cólera de Deus...", "Exibicionismo ostentoso para afrontar o Itaqui..."," Pomadista que não vale a fortuna a vestir...".
Os dias corriam, intensificando o alarme geral dos espíritos. Os dedos das costureiras não cessavam, noites a dentro. Até crianças enfiavam contas de vidro.
A cidade, toda ela, era uma colmeia, uma oficina de luxo, santuário das vaidades mais humanas deste mundo.
O jornalzinho crítico, que corria de mão em mão, à saída das missas de domingo, na Igreja Matriz de São Patrício, alargara sua secção de "Dizem que...".
Enquanto a alma feminina da cidade entrava em delírio, cada qual ocultando da outra a invenção original, para que o plágio não estragasse a surpresa no grande "Dia Azul", os jovens refaziam suas casacas, compravam luvas novas, encomendavam sapatos de "charol", com entrada baixa e fivelas de prata.
Comissões de experientes artistas amadores - da terra - decoravam o salão, o palco e os camarotes do Prezewodoski.
A arraia-miúda, que éramos nós, penetrava em toda parte.
Um dia, depois de estafantes provas de vestidos na casa de minhas tias, com as meninas mais belas da cidade; de espartilhos por cima de cadeiras e sofás; ligas compridas e peças íntimas e toda a variedade de saias até os pés, farfalhantes, bojudas, pesadas de rendas de Flandres e Valência, deram comigo, escondido embaixo de um canapé, deslumbrado com o espetáculo inédito e de estranhos quebrantos para os meus olhos.
O dia, porém, chegou. Ao amanhecer, uma duzia de foguetes, queimados à frente do Teatro anunciava, aos quatro cantos da cidade, como alvorada, que o grande dia amanhecera... Alguém comentava: "que pena que o dia chegou, pois o bom foi viver estes três meses, da expectativa, dos sonhos, das ilusões e das esperanças. Um poeta da terra tecera um "Soneto Azul", "em gabação", com "pena de ouro", à maneira de Castro Alves, "nas lâminas do céu!" Era lustroso nas palavras, como a seda ou o cetim.
Um carreiro de formigas humanas começou a transportar, da casa de Dona Sinhá Rodrigues para a grande mesa de doces situada no palco do teatro, a confeitaria mais rica da cidade: os bolos vistosos, revestidos da neve dos merengues, cobertos de confeitos de cor de prata, azuis, vermelhos, amarelos; pudins que se enfileiravam, ligados por correntes de fios de ovos, à maneira de guirlandas; quindins, bom-bocados e papos-de-anjo, tudo aquilo que nos fazia a delícia dos olhos amoráveis e do paladar espicaçado.
Pratos de porcelana, pratos de cristais, bandejas de prata, de Sévres e Limoges, tudo deixou, nesse dia, o fundo dos guarda-louças preservados à chave. Passava aquela Procissão de novas Pan-Atenéias, sob os olhos ávidos do povo, deixando uma promessa de felicidade nos expectantes. O que consolava era o "logo mais..." E o "logo mais" era como um plano estratégico de assalto, uma declaração expressa de beligerância.
À noite, os depósitos exteriores de carbureto ferviam como ventres de vulcões. Por todos os bicos que saltavam dos fios de chumbo, corridos à parede, envoltos pelas campânulas de cristal, a luz de acetileno jorrava, transformando o salão numa festa de luminárias.
Comissões de recepção, de atenção e fiscalização, movimentavam-se à entrada do Teatro.
Filhos de fazendeiros, estudantes que vinham de Porto Alegre, a chamado dos pais, vestindo casacas da última moda, jovens em férias, das Escolas Naval e de Guerra, forrados de alamares, em seus uniformes de gala e luvas brancas, tudo parecia transformar Itaqui, como em passe de mágica, no reino encantado de um conto de Scherazade.
Num quadrante do Teatro, em coreto especial, a orquestra de cordas que viera de Buenos Aires, esperava pelo momento da marcha triunfal, que marcaria o início da polonaise.
Deslumbramento e delírio em todos os corações, expectativa em todas as curiosidades.
Nas ante-câmaras reuniam-se as donzelas, umas devorando as outras com olhares que buscavam medir, analisar, avaliar, comparar, obcecadas pelas vaidades. Às dez da noite, formaram-se as filas de cavalheiros e damas, para a entrada solene no salão, de piso lustrado a estearina. A orquestra, a postos, esperava o sinal.
O maestro ergueu a batuta e correu o olhar à entrada. O Mestre de cerimônias acenou e os ritmos romperam, inundando de sonho e alegria o ambiente inflamado, estremecendo os seios nos camarotes, onde as grandes damas da cidade, numa atordoante sinfonia de azul, agitavam seus leques de plumas e madrepérolas, estendendo do alto o cabo de ouro do "lorgnon".
Em seguida, penetraram no salão os pares, num espetáculo que lembrava os contos de fadas de Mãe-Lúcia. Uma variedade bizarra de azuis, uma fortuna de jóias com brilhantes, a luzir, pérolas como gotas de leite em colos nus, decotados, arfantes, cinturas de vespas, com espartilhos premindo o ventre e o coração. Graça e beleza. Juventude e alegria.
A última hora, entrou, pela mão de um cavalheiro, a menina que vinha vestida à mais fina maneira de Paris, trazendo um diadema ducal à cabeça, penteada à moda do Império.
Um frêmito percorreu a sala inteira. Uma rainha no porte, na beleza e na elegância. A cauda, acolchoada de seda, pendia dos ombros como um manto real. Era filha de um chefe político da oposição. Os partidários prorromperam em aplausos. A outra banda silenciou.
Havia uma comissão julgadora para o premio consagrador. Mas, entre a filha do chefe oposicionista e a filha do chefe situacionista, pendeu a balança partidária. Motivo de escândalo. Decepção de muitos. Chacotas de outros. Mas, com tudo isso, a Rainha de uma noite de sonho, teve o despertar da Borralheira com seus sapatos de vidro.
Terra Xucra. De Ornellas, Manoelito, pgs. 24 a 27 Ed. Sulina 1968.
Biblioteca de Marilia Gudolle Gottens
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